/A violência policial no Brasil e a necessidade da educação em direitos humanos nos currículos escolares – apontamentos necessários – eleno Araújo Filho*

A violência policial no Brasil e a necessidade da educação em direitos humanos nos currículos escolares – apontamentos necessários – eleno Araújo Filho*

Heleno Araújo Filho*
Presidente licenciado da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – CNTE – BRASIL

O Brasil se apresenta ao mundo com uma das piores estatísticas em violência policial: somos um dos países em que a Polícia Militar mais mata pessoas civis no planeta e, em contrapartida, atingimos a marca de termos também um dos maiores números de policiais mortos em operação. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), uma organização não-governamental composta por pesquisadores, cientistas sociais, gestores públicos, policiais e operadores do nosso sistema judicial, nossa taxa de letalidade policial é mais alta do que muitos países que são considerados os mais violentos do mundo, como Honduras e África do Sul.

Anualmente, o FBSP produz o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que se baseia em informações fornecidas pelas secretarias de segurança pública estaduais, pelas polícias civis, militares e federal, entre outras fontes oficiais da Segurança Pública. Trata-se de um importante diagnóstico sobre a realidade de violência a que estamos, enquanto país, submetidos. O último relatório, apresentado já nesse ano de 2022, com dados relativos a 20211, o Brasil saltou, do ano de 2013, de um número de 2.212 mortes decorrentes de intervenções policiais para, no ano de 2021, apresentar um número de 6.145 vítimas dessa violência.

Apesar de uma discreta queda de 4,2% nesse número de mortes, quando comparado o ano de 2021 e 2020, o que se percebe é uma tendência geral de aumento da violência policial no país. E as maiores vítimas dessa violência continuam sendo a população negra, jovem e pobre das periferias de nossas grandes cidades: temos um quadro desolador e cruel, em que uma pessoa negra é morta a cada 4 horas no Brasil. Ser negro aqui nesse gigante dos trópicos, onde temos a maior população negra fora do continente africano, significa estar contabilizado em uma cruel estatística: pretos e pardos têm 2,6 vezes mais chances de ser assassinados, representam 2/3 de todos os encarcerados e apresentam expectativa de vida três anos menor do que brancos. Esses são dados de uma outra fonte de informações sobre segurança pública no país: a Rede de Observatórios da Segurança, iniciativa também da sociedade civil brasileira com entidades acadêmicas do setor, acompanha as políticas públicas de segurança, fenômenos de violência e criminalidade em 7 dos maiores estados brasileiros2.

A explicação desse quadro desolador da realidade brasileira vem de múltiplos fatores e não deve nunca ser reduzida a variáveis simplistas. O morticínio policial de negros no Brasil é explicado, em grande medida, por termos tido no país um dos processos escravagistas mais longevos da história: fomos o penúltimo país das Américas a pôr fim ao escravismo imposto às populações negras e, mesmo assim, quando o fizemos somente no ano de 1888, não adotamos nenhuma política de reparação a esse enorme contingente populacional brasileiro. Os negros foram libertados, mas continuaram aprisionados pela condição de miséria a eles imposta. A abolição da escravatura no país não passou, portanto, de um processo meramente formal: os negros brasileiros, que hoje morrem aos milhares nas mãos de nossas polícias, estão marginalizados até os dias atuais pela pobreza e falta de oportunidades.

Já quanto à violência policial, é certo que estamos em um continente dos mais violentos do mundo: a América Central e a América do Sul são as regiões mais violentas e lideram o número de homicídios no mundo. O dado é do relatório global sobre homicídios3 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc), da Organização das Nações Unidas (ONU). O Brasil, na América do Sul, tem a segunda maior taxa de homicídios. Nesse contexto, a matança promovida por nossas forças de segurança guarda relação direta com os 21 anos de ditadura militar que o país viveu entre os anos de 1964 e 1985.

Apesar de termos vivido no continente uma onda similar de regimes ditatoriais militares em muitos países, o Brasil talvez seja o lugar que, nos períodos de redemocratização da região, se absteve quase que integralmente de consolidar uma política reparadora de nossa memória histórica. Enquanto muitos países vizinhos, que viveram ditaduras sanguinárias no mesmo período, promoveram reparações e processos de punição de seus agentes públicos que fizeram tortura contra seus cidadãos, o Brasil teve um processo de anistia política que igualou os torturadores do Estado com os militantes políticos que lutaram por democracia. Isso terminou por manter intocáveis, ao longo de nossa história, as estruturas das polícias de nosso país.

A truculência que se vê no Brasil nas ações policiais contra a população mais marginalizada (negros, pobres, moradores das periferias) é herança de um modelo de governança política que nunca foi investigada em seus abusos na época de nossa ditadura militar. Em nosso processo de redemocratização política, ao final da década de 1980, foi mantido o modelo de polícia criado pelo regime ditatorial: uma corporação responsável pelo policiamento ostensivo, e outra civil, que cuida das investigações. Dessa forma, a militarização de nossa polícia terminou por impor violência contra a população mais vulnerável4.

Essa realidade se aguçou desde 2019 quando o país elegeu um ex-militar como Presidente da República. Desde que Jair Bolsonaro assumiu o poder naquele ano, o seu discurso de ódio propalado dia após dia em suas redes sociais, e mesmo em canais oficiais de governo, fomentam um caldo de cultura que alimenta a violência política no Brasil e, em grande medida, autoriza tacitamente o genocídio praticado por nossas forças de segurança contra nosso povo. Desde sua campanha eleitoral, ainda no ano de 2018, Bolsonaro emite opiniões defendendo o uso da tortura como método de investigação, incita o ódio contra minorias diversas (mulheres, negros, população LGBT, etc.) e alimenta um discurso de acirramento de toda e qualquer diferença política.

É nesse cenário que se encontra a única saída possível para superarmos o atual estado de violência a qual o país está submerso: a educação de nosso povo deve incluir, desde os currículos escolares até campanhas públicas de conscientização, uma cultura de paz e tolerância. E isso só poderá ser alcançado se assumirmos uma educação, formal (nas escolas) e não formal (na sociedade de uma forma mais geral), de direitos humanos. A educação em Direitos Humanos é essencialmente a formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz. Se a igualdade entre as pessoas, o fim da opressão e discriminação, a justiça e a garantia da dignidade, a proteção e a liberdade são alguns dos princípios e valores que regem a Declaração dos Direitos Humanos, em vigor desde 10 de dezembro de 1948, é nosso dever, enquanto país, fomentar esse novo caldo de cultura.

A escola, como espaço de referência central na educação formal de nosso povo, deve ser protagonista nesse processo. Da mesma forma, é fundamental que, ao final desse governo violento que se instalou no Brasil desde as eleições de 2018, promovamos campanhas públicas voltadas para a sociedade em geral, para além do público escolar. Esse desafio se torna um imperativo ético e político para todos os cidadãos que estejam comprometidos com um novo país, de menos violência e agressões.

O fim do governo Bolsonaro não porá um ponto final e imediato ao caldo de cultura de violência política a que estamos inseridos atualmente. Ao fim das contas, o atual presidente é apenas um sintoma de toda essa realidade que, certamente, foi aumentada e superdimensionada por suas políticas. O armamento da população civil no Brasil cresceu enormemente desde que ele se apoderou do poder no país. Ponto central de sua plataforma política e eleitoral enquanto ainda era candidato, a facilitação do porte de armas possibilitou que o registro de armas letais e de fogo no país crescesse 474% em seu governo5. O número de pessoas com posse de armas também aumentou, passando de 638 mil para 1,5 milhão, um crescimento 133,6%, de 2017 a 2021.

Trata-se, assim, de um desafio enorme superar o atual momento. A derrota eleitoral desse atual presidente não será suficiente para dirimir a cultura da morte por ele fomentada e da qual ele é apenas a ponta de um enorme iceberg. É por isso que, para atingirmos a finalidade de promovermos uma cultura de paz no país no próximo período, será fundamental o fomento de uma educação em direitos humanos no Brasil. Só assim, derrotaremos a força bruta e resgataremos o país cordial e acolhedor de todas as diferenças, marca singular de nosso povo e que sempre fez parte de nossa própria identidade social e cultural.

*Professor da educação básica brasileira, atualmente é presidente licenciado da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – CNTE para concorrer às eleições gerais no país como candidato a Deputado Estadual em Pernambuco.

  1. Disponível em https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/.
  2. Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo
  3. Conferir em https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/frontpage/2019/07/brasil-tem-segunda-maior-taxa-de-homicdios-da-amrica-do-sul--diz-relatrio-da-onu.html.
  4. Conferir em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57079777.
  5. Conferir em https://www.cartacapital.com.br/sociedade/registro-de-armas-de-fogo-cresce-474-no-governo-bolsonaro/.